top of page
Foto do escritorAlexandre Costa

7 - A Égua do Terceiro Andar, por Nora Prado*

Uma das minhas rotinas que mudaram, drasticamente, desde o início das enchentes no Rio Grande do Sul foi a quantidade de tempo destinado a assistir aos jornais locais e nacionais para saber das notícias da tragédia. Natural essa busca por informações atualizadas que deem conta do novo normal enfrentado por mais de oitenta e cinco por cento da sociedade gaúcha. Número, assustadoramente, expressivo e que revela a extensão do desastre climático enfrentado no sul do Brasil.


Dentre as situações chocantes ou bizarras, mais uma relacionada a um cavalo, na verdade uma égua, toma conta do noticiário local. Desta vez a equina entrou num prédio e subiu até o terceiro andar para se abrigar das águas volumosas. Bombeiros chegaram ao local e, como é impossível acessar o prédio pelas escadas, já que o térreo está totalmente alagado, eles escalaram o prédio levando cenouras para alimentar o cavalo que as devorou faminto. Numa complexa e delicada operação os bombeiros e veterinários sedaram o animal, vendaram os seus olhos e o içaram através de cordas até descer sobre um barco a beira do prédio. Mais um resgate de grande porte com final feliz. Não se sabe quantas centenas de cavalos devem ter morrido ou se extraviado pelas cidades gaúchas e que possam estar em situação de desespero ansiando pelo resgate ou um lugar seco e seguro.


Como os equinos, os rebanhos de bois, porcos e ovelhas sofrem, igualmente, com as cheias abissais que assolam o Estado. São enormes populações de animais que foram deixados a própria sorte desde que o céu desabou por aqui. Imagino o que não deva ter penado a égua que foi parar num local tão impróprio quanto improvável. Por quanto tempo ficou ilhada, assustada e esfomeada, presa no quartinho apertado do terceiro andar? Sua atual e improvisada baia foi que a salvou da morte. Seu instinto de sobrevivência, acionado, encontrou meios de se refugiar no alto do prédio até que fosse resgatada numa reportagem de mais um feito formidável dentro do caos. Resgate de proporções e semelhante ao do cavalo Caramelo resgatado do telhado de zinco na semana passada.


O tempo passa e a altura das águas demora muito a diminuir, principalmente depois das últimas chuvas com as consequentes cheias nas cabeceiras dos rios. Com muito vagar o volume das águas de algumas ruas na capital começam a diminuir em alguns trechos de avenidas que voltam a ser transitáveis. Pouco a pouco a normalidade nos acena do outro lado da ponte. Creio que a tendência daqui para frente será a baixa das águas, num ritmo lento, porém constante. A partir daí, teremos uma paisagem ainda mais feia e desoladora, com os vestígios dos escombros a mostra dando a real medida de todo o estrago.


Serão dias de muito trabalho para recolher os entulhos das casas, prédios e das ruas, num esforço coletivo de limpeza urbana nunca visto. Toneladas de lixo formada por móveis irrecuperáveis, colchões apodrecidos, objetos quebrados, destroços variados e muita lama encobrindo tudo. A volta para casa será um capítulo à parte, traumático para milhões de pessoas que perderam tudo nessa enchente. Sem contar os milhares que já tinham perdido tudo nas enchentes do ano passado e que se reencontram com o cenário de guerra na sua própria casa. Não será fácil encarar a sujeira e os estragos de máquinas de lavar, eletrodomésticos e um cem número de itens perdidos desde roupas, sapatos, documentos, livros, discos, comida e objetos variados.


Muitas certamente tentarão desesperadamente limpar e secar fotografias, recuperando a memória alagada numa tentativa, muitas vezes inglória, de preservar doces momentos do seu passado e instantes preciosos da sua vida. Uma notícia linda a respeito disso eu li na internet. Uma família que voltou para casa e, antes de tudo, se ocuparam de lavar e secar as fotografias miraculosamente encontradas no chão da sala.


Assim como a égua do terceiro andar não irá recuperar sua baia nem os seus campos familiares, tão cedo, aqueles que perderam tudo lutarão para reencontrar uma réstia de identidade perdida, seja através de fotografias enlameadas, objetos de valor sentimental ou qualquer coisa que remeta para a sua história pessoal, pois mais que tudo, será urgente e necessário recuperar o sentido de pertencimento perdido.



bottom of page