ESQUINA DEMOCRÁTICA É SINÔNIMO DE RESISTÊNCIA E LUTA (ONTEM, HOJE E SEMPRE)
- Alexandre Costa
- 10 de mar.
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Atualizado: há 4 dias
Localizada no coração de Porto Alegre, a Esquina Democrática se consolidou ao longo dos anos como palco das principais manifestações políticas e culturais da capital do Rio Grande do Sul, que, no dia 26 de março, completará 253 anos de existência.

por Alexandre Costa / fotos de Alexandre Costa com utilização de IA
Formado pela congruência de duas importantes vias, o cruzamento da Avenida Borges de Medeiros com a Rua dos Andradas (chamada carinhosamente de Rua da Praia) não se restringe apenas a um ponto geográfico da cidade. Além de ser um patrimônio cultural do município, o espaço é um símbolo da efervescência, da inquietação e do ímpeto rebelde, contestador e irreverente do povo gaúcho.
Ao longo dos séculos, mesmo diante das adversidades do clima e da imposição dos embates e das guerras, os homens e as mulheres desta terra jamais abdicaram de seus ideais e da incansável busca por liberdade, igualdade e humanidade. Para compreender a alma dos gaúchos, é preciso voltar no tempo.

Antes mesmo de chegarem à América, portugueses e espanhóis definiram o limite territorial de cada país no Novo Continente. De acordo com o Tratado de Tordesilhas, assinado em 1494, a área onde hoje é o Rio Grande do Sul pertencia aos espanhóis. Como o tratado nunca foi respeitado, os conflitos sangrentos eram uma constante, antes e depois da independência do Brasil.
Desde a sua fundação, em 26 de março de 1772, quando era chamada de Freguesia de São Francisco do Porto dos Casais, até os dias de hoje, Porto Alegre se fez presente na vida política e social do Rio Grande do Sul e do Brasil.
Corre aos quatro ventos que as lutas e as batalhas em solo gaúcho foram sendo incorporadas pela identidade do seu povo, o que ficou mais acentuado com a Revolução Farroupilha. Durante uma década (1835 a 1845), os gaúchos defensores da República travaram batalhas e mais batalhas contra as tropas do governo imperial do Brasil, que era centralizador e escravocrata.

Os gaúchos deixaram suas marcas em diversos outros episódios da história do país, como na Revolução Federalista, entre 1893 e 1895; no movimento de abolição da escravatura, em 1888; e na Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889. Outros fatos tiveram grande repercussão no estado mais ao sul do Brasil, como a Revolução de 1930, o Estado Novo, em 1937, e o golpe militar de 1945, que culminou com a queda de Getúlio Vargas.
O suicídio de Vargas, em 1954, causou uma comoção em todo o Rio Grande do Sul. A morte do presidente, que era gaúcho de São Borja, acabou gerando uma grande revolta do povo. Em Porto Alegre, manifestantes quebraram lojas e estabelecimentos comerciais nas ruas centrais da cidade, próximo de onde hoje é a Esquina Democrática.
LEGALIDADE E DITADURA MILITAR

Em 1961, os gaúchos foram novamente protagonistas de um embate político que por pouco não terminou em um conflito armado. O movimento pela Legalidade surgiu após a renúncia de Jânio Quadros e a instauração do parlamentarismo no país, que nada mais foi do que uma manobra política das forças conservadoras para impedir que o gaúcho João Goulart, então vice de Jânio, assumisse o cargo de presidente da República.
Três anos depois, em 1964, os militares decretaram um golpe de estado e o país se viu diante das arbitrariedades e das violações cometidas pela ditadura, regime que vigorou até 1985. DIRETAS JÁ E A CONSTITUINTE
Em 1982, os brasileiros saíram às ruas pelo movimento das Diretas Já. O ex-prefeito e ex-governador Tarso Genro lembra que, durante a ditadura militar, a Esquina Democrática era um local muito visado pela repressão. Também recordou da importância política que o espaço, localizado na região central da cidade, adquiriu nas Diretas Já e na redemocratização do Brasil, por meio do processo da Constituinte.
Entrevista com o ex-governador do RS Tarso Genro
NOME DA ESQUINA DEMOCRÁTICA
O nome "Esquina Democrática" surgiu durante a ditadura militar, no final dos anos 70, quando Jussara Cony, uma jovem feminista ligada ao movimento estudantil, subiu em um palanque improvisado no cruzamento da Avenida Borges de Medeiros com a Rua dos Andradas para denunciar o autoritarismo, a censura, as prisões, as torturas e as mortes daqueles que se opunham ao regime que amordaçava o Brasil.
Aquele era apenas mais um entre os muitos protestos relâmpagos realizados durante os anos de chumbo, com a participação daquela menina habituada a denunciar os crimes cometidos pelo regime militar. Do alto das caixas de madeira que eram usadas no transporte de frutas e verduras a serem comercializadas no centro de Porto Alegre, Jussara Cony resolveu convocar a população para mais um protesto que seria realizado naquela mesma “esquina democrática”.
A jovem estudante, filha de um ferroviário comunista, que aos 14 anos iniciou sua vida política no movimento secundarista, nunca imaginou que a expressão acabaria se popularizando tanto, transformando aquele cruzamento na esquina mais importante de Porto Alegre. Mais tarde, Cony foi eleita vereadora da cidade e também deputada estadual do Rio Grande do Sul.
Confira a entrevista com a ex-vereadora de Porto Alegre e ex-deputada estadual RS Jussara Cony.
VEREADORES CASSADOS PELO AI-5 USARAM A ESQUINA DEMOCRÁTICA EM 1977

Em fevereiro de 1977, dois vereadores da Câmara Municipal de Porto Alegre foram cassados com base no Ato Institucional nº 5, o AI-5, instituído em 13 de dezembro de 1968. Glênio Peres e Marcos Klassmann, utilizaram a Esquina Democrática para dar continuidade ao trabalho que realizavam em seus gabinetes na Câmara.
O regime militar permitia a existência de apenas dois partidos: o MDB, de esquerda; e a ARENA, de direita. Naquele ano, a esquerda venceu as eleições na grande maioria dos municípios do país. Em Porto Alegre, a esquerda havia conquistado maioria absoluta das cadeiras, nas eleições de 15 de novembro de 1976. No entanto, ao tomar posse, no dia 31 de janeiro de 1977, na presença de autoridades civis e militares, Glênio Peres subiu à tribuna para proferir o Discurso na Terra do Silêncio, denunciando a tortura e a falta de liberdade no país.
CONFLITOS, EMBATES E MORTE

A Esquina Democrática também foi cenário de um conflito entre integrantes do Movimento dos Sem-Terra (MST) e da Brigada Militar, que culminou com a morte de um brigadiano. No dia 8 de agosto de 1990, Porto Alegre assistiu um dos conflitos mais sangrentos da sua história recente, que resultou em 72 feridos e um morto. Após intenso confronto que começou na Praça da Matriz, o cabo Valdeci de Abreu Lopes foi vítima de um golpe de foice. Os autores nunca foram identificados, porém seis pessoas foram condenadas como coautores do crime. Para evitar a prisão de uma das integrantes do MST, que estava grávida, os colonos entraram em luta corporal com o brigadiano. A BM deu início a uma perseguição indiscriminada aos sem-terra, que buscaram proteção no Paço Municipal. Olívio Dutra, que era prefeito da cidade, descreveu os momentos de tensão durante o episódio.
A BM colocou uma placa, na Esquina Democrática, em referência à bravura do cabo Valdeci de Abreu Lopes.
Confira a entrevista com o ex-governador do RS Olívio Dutra sobre a Esquina Democrática
TOMBAMENTO
Ao longo do tempo, o cruzamento passou a ser reconhecido como um dos principais e mais tradicionais pontos de manifestações políticas, artísticas e culturais de Porto Alegre. No dia 17 de setembro de 1997, a Esquina Democrática foi tombada pelo Patrimônio Histórico e Cultural do Município. A iniciativa é uma referência à vida e à memória desta metrópole, construída a ferro e fogo.
ESPAÇO DA PLURALIDADE
Desde a década de 70, grupos de artistas de teatro usavam a Esquina Democrática para suas apresentações. Na época, o local também era chamado de Esquina Zaire, nome dado pelas lideranças do movimento negro que se reuniam naquele espaço, que também foi adotado por sindicalistas, feministas, protetores de animais, defensores de pautas do movimento antirracistas e de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer ou Questionadores, Intersexuais, Assexuais, Pan/poli, Não-binárias (LGBTQIAP+).
Durante as campanhas eleitorais, o espaço é um dos mais disputados da cidade. A Justiça Eleitoral realiza sorteios para organizar a utilização do local. A Esquina Democrática tem sido palco de grandes manifestações políticas. Desde a luta contra a ditadura, passando pelas Diretas Já, o Fora Collor, os atos de 2013, quando milhares de pessoas saíram às ruas em todo o Brasil para protestar contra o preço das passagens de ônibus, a resistência ao golpe contra Dilma Rousseff e, mais recentemente, nas denúncias contra o governo fascista de Jair Bolsonaro
Por tudo isso, mais que um patrimônio histórico e cultural, a Esquina Democrática é sinônimo de resistência e luta, ontem, hoje e sempre.