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Foto do escritorAlexandre Costa

Gênesis 4: A versão mais que verdadeira - Magdala, por Paulo Gaiger*

Eva, primeira exilada política da história, viveu muitos anos e, ao que parece, sem paz ou descanso. Persecuções, homens mandões, ameaças, estupros, gravidez indesejada, um fogão, um tanque de roupas, guerras, um deus com seu olho vigilante e vingativo enviando anjos, profetas, ditadores e discípulos para achincalhar e perpetuar injustiças. “Da Mesopotâmia ao Alegrete, de Shanghai a Galileia”, escreve Eva, “acabei em Magdala, junto ao mar. O que me atordoava, e sei que atordoará as mulheres pelos próximos dois milênios, são o preconceito e a discriminação que caem sobre todas nós simplesmente por sermos mulheres. Nem sempre foi assim, diga-se de passagem. Antes de imporem o patriarcado e com ele os deuses, todos masculinos, vivíamos em parceria em muitas regiões conhecidas de nosso planetinha redondo, sem belicosidade, sem genuflexão, sem enaltecer a morte e heróis, mas sim felizes com a vida e o amor. Saudades! Hordas de machos vindos de outros lugares, invejosas de nossa felicidade e parceria, em um pouco mais de três milênios destruíram uma das experiências humanas mais belas de todos os tempos. Junto com reis, sacerdotes, rabinos, dinastias e exércitos, o mundo masculinista que tomou conta de tudo, trouxe as religiões e o apagamento das mulheres. Fomos sendo esfumaçadas da história e expulsas dos espaços públicos. Aqui em Magdala, estou cercada de machos, um bando de ignorantes que se apoia em profecias, crendices, no pensamento mágico, num sem-pé-nem-cabeça que apenas retroalimenta a mesma ignorância. Aqui me dei o nome de Maria, nome comum que, imagino eu, tornará mais difícil a perseguição à minha pessoinha. A minha vantagem é a de que sei ler e escrever, algo raríssimo por estas bandas para uma mulher. Para os homens também. Conheci Jesus em Cafarnaum. Morenaço, olhos escuros, lindão e com boas ideias, mas precisava de uma chacoalhada em relação ao pensamento sobre as mulheres. Aí entrei eu. Rolou uma parceria muito legal. Ele foi desconstruindo as heranças machistas que todos os homens têm. Eu firme ao seu lado. Outras mulheres se somaram ao grupo em uma época em que elas tinham mais é que ficar reclusas e de cabeça baixa diante de um homem. Jesus havia aprendido muito com seu primo e com outros messias-rebeldes contemporâneos que eu já conhecera: o Egípcio, Judas, o Galileu, Apolônio de Tiana e o próprio João Batista, entre dezenas e dezenas. Todos homens, todos acreditando na libertação do seu povo que era sufocado por outros homens e crendo no seu povo como o povo escolhido por esse tal deus de Israel que não me deixa em paz, a representação divina do machismo, é claro. Absolutamente todos, messias, rebeldes, profetas, sufocados, sufocadores e o divino subjugando as mulheres. Que doidera! Esta história tenderá a se repetir muitas vezes. Achei meu lugar e meu crush. Debatia com Jesus e escrevia muito do que ele iria dizer para as multidões. Isso causou certa insatisfação entre alguns de seus seguidores homens: como assim, uma mulher dando pitacos, sugestões e redigindo textos para Jesus? Felizmente, ele não tinha desejos de poder, nem se achava o melhor pão da ceia. Com o tempo, as coisas foram serenando e Pedro e outros descontentes tiveram que colocar a lira no saco. Fiquei muito amiga da Maria, a mãe de Jesus. Mulher forte, meio na dela, traumatizada pelo estupro que sofreu quando tinha mais ou menos catorze anos, coisa bem normal no mundo machista, o que deu origem ao seu filho. Eu fiquei puta da vida porque muitos anos depois criaram o mito da intervenção divina a partir de outros mitos para dar um caráter sagrado a um crime hediondo. Mais uma vez, mulheres a serviço dos homens, sejam eles mortais ou deuses. Quando prenderam, torturaram e mataram Jesus, eu fiquei revoltada e arrasada. Não arredei o pé. Gritei, protestei contra a injustiça que fizeram com o meu companheiro. A maior parte de seus seguidores homens alisou a cabeleira. Judas Iscariotes, que também sabia ler e escrever, se sentiu derrotado. Acreditava que Jesus era filho de deus e, portanto, imortal. Tinha certeza de que ele não morreria. Era o mais místico, fiel e leal dos apóstolos, um amigão. Pensamento mágico e ingênuo, coitado. Em depressão profunda, entristecido, tirou a própria vida. Entre as centenas de crucificados, um coletivo de mulheres, do qual eu participava, retirou Jesus da cruz. Eu lavei o seu corpo e o sepultei com a ajuda das mulheres, cheias de tristeza. Perdi o grande amor da minha vida. Sua mãe chorava ao meu lado. Reconhecíamos que Jesus havia sido o único messias, entre todos os que apareciam, que respeitou as mulheres e as entendeu em pé de igualdade. Mas pouco tempo se passou e tive que fugir novamente da ira de deus, não somente eu, mas todas as mulheres, inclusive, fugir dos seguidores de Jesus, os autodenominados cristãos. Maria, mãe de Jesus, outras mulheres e eu, afinal das contas e por linhas tortas, acabamos cultivando a ideia de parceria, mesmo que eu tenha sido, ao longo dos séculos, chamada de prostituta, no que não vejo problemas, e desprezada de meu papel histórico como a mulher que esteve ao lado de Jesus, e ele ao meu lado, todo o tempo. Maria, sua mãe, foi pintada como uma mulher mansa, zelosa e sujeitada. Homens, né! Décadas depois, gente que nunca viu Jesus escreveu muita asneira e inventou muita coisa. Inclusive esse papo de milagres e ressurreição, adaptação medonha de fábulas e mitos que a gente ouvia falar. Mas quem eu tenho vontade de esganar é aquele tal de Saulo de Tarso...”.

(*) Conto publicado no livro Metáfora das Flores

Gênesis 2 – O Jardim do Éden

Gênesis 3 – Abraâmicas


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