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Foto do escritorAlexandre Costa

O ano em que quase fui prefeito, por Paulo Gaiger*

A comadre vai lembrar, é só remexer nos socavões da memória. Eu andava chateado observando as ruas dos meus vizinhos, abandonadas, sem espaço para caminhar e para as bicicletas dos piás. Jogava miolo de pão para os passarinhos que disputavam a iguaria com a Gisela, minha galinha poedeira, e o Garnisé, que nunca me deixa dormir feito guri adolescente. Vi toda aquela fumaceira, vinda dos fogueirais, os monóxidos excessivos por em cima das pessoas, da nossa mesa de todo o santo dia. E um doutor me disse que os venenos correm pelos rios, para os mananciais, matam as abelhas e os parreirais, que é um deus nos acuda. Sem banho de açude, de lagoa, de rio, sem beber água da sanga. A cidade sem parques, sem áreas verdes, sem tranquilidade. Chamam a isso de desenvolvimento. Foi nessa ocasião, olhando a natureza estropiada, os bairros, as calçadas, a feiura da cidade e preocupado com os mandinhos, que decidi ser candidato à prefeitura para acabar com esse desaforo. Esta querência precisa de um bom capataz. Fui ao juiz, aquele que cuida das eleições e que se parece a um urubu. Um causo bem contato, umas ideias bem bonitas na cabeça e lá estava o meu nome anotado num papelito como candidato. Convenci o juiz a ter dois vices, pois não queria briga em casa por vaidade: Onofre, meu pangaré, e Bento, meu cusco, para vices e eu, para prefeito. Bem, agora era sair município a fora em campanha, fazendo propaganda que é alma do negócio, me disse o compadre do bolicho. Onofre, Bento, Gisela, Garnisé e eu saímos cruzando bairros e ruas, atravessando charcos, o centro, a periferia, a zona rural, a burguesia, os quilombos sempre recebidos com alarido, abraços e festança. Quero dizer, nem sempre. Numa vila, um rapaz de cabelinho lambido por vaca, meio agroboy, como dizem, me perguntou se eu era a favor dos maricas, das florzinhas, essas coisas que eu não entendo muito, mas que penso que a gente não deve meter o bedelho. Pedagogicamente lhe disse que ele não precisava de minha autorização. Diante da cara do riquinho desmiolado, lhe animei: “olha só, deixa os viventes serem felizes, xiru com xiru, prenda com prenda. Cada qual ser o que é. Não te mete!”. E minha caravana seguiu seu rumo. Noutro cafundó, me indagaram sobre a liberação de armas para todo mundo. Cocei o queixo e fitei no fundo dos olhos daquela gente. Isso não é coisa para prefeito decidir. Por minha vivência, qualquer entrevero no bolicho, na cancha reta, no futebol sempre terminava com muita gente talhada e triste. E isso que o pessoal só usava rebenque, adaga e facão. Imagina se tivessem arma de pólvora? De jeito nenhum. Ao invés de armas, teremos muitas escolas pros mandinhos e pros velhos analfabetos. Quem vai ficar triste é o dono da fábrica de matar. Nas quebradas, dei com uma associação de bairro onde me indagaram sobre cotas para negros e pobres. Lembrei-me do preto Sebastião, já na casa dos cento e picos anos. O velho não pode estudar, largado na pobreza desde o fim da escravidão, que é outra escravidão, de acordo com a minha ideia. Respondi que sim, todos teriam direito ao estudo, e os mais pobres teriam o apoio do município. Muita arte e livros, porque as artes e os livros não deixam o vivente ficar abostado. Eu aprendi a ler depois de velho, e que coisa bem boa ver o universo! Aí me perguntaram sobre corrupção e desigualdade. Para as coisas ficarem bem, tem que ser como na natureza, equilíbrio, harmonia, todos faceiros com a vida e com jardins em suas casas. Agora, o sem vergonha que bate em mulher, sonega impostos, ataca os Sebastião, passa a perna na licitação, não honra os acordos, dissemina mentiras, funda igreja e grupos fascistas para enganar o povo e tantas coisas feias, vai passar pela canga pedagógica. Quizás, uma senhora tunda de deixar marca no traseiro. No dia das eleições, as pesquisas davam minha vitória como certa. Então, veio a terrível notícia: qual o número do candidato? A la pucha, o juiz esqueceu este detalhe. Eu não tinha número, nem Onofre, nem Bento. Acho que o urubu desconfiou de que eu ia retirar privilégios de seus amigos. E a querência seguiu triste e, nem gosto de comentar, com muita burrice e muita gente estropiada. A cidade feia de dar dó e... como dizem, desenvolvida, mas fedorenta e sem parques. E sem água pura para beber na sanga.

 

(*) Adaptação do texto “O dia em que quase fui presidente” publicado no livro “Não vá ao supermercado nos domingos” (ed. Traços&Capturas – 2019).


 

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