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Foto do escritorAlexandre Costa

3 - O Boi no Altar, por Nora Prado*

Em tempos de distopia e desastres climáticos, uma centena de imagens insólitas se derramam também em rede. Além da imagem do cavalo sobre o telhado, uma outra chama a tenção dentre as tantas reveladas pela tragédia gaúcha. A mais recente delas mostra um boi sobre um altar de uma igreja inundada. É algo tão inusitado quanto sublime, pois além de evocar a salvação do animal que encontrou abrigo no púlpito do altar, também remete a vaca sagrada cultuada na Índia onde esse animal é visto como sagrado. O boi na sua imponência bovina e serena nos transmite uma sensação de tranquila passividade embaixo do crucifixo no centro da nave alagada. Como se ele mesmo fosse uma divindade suprema a ser adorado neste momento de absoluto caos sobre as centenas de cidades atingidas pelas enchentes no Rio Grande do Sul.  


E sobre isso eu gostaria de discorrer, pois diante dos milhares de cães e gatos resgatados, também se juntam cavalos, vacas, porcos e ovelhas. Nossos irmãos animais têm sofrido imensamente com essa tragédia, embora demonstrem uma resistência extraordinária para suportar dias a fio sem comida nem água, passando frio e desamparo em locais desertos e distantes. Ainda há salvamento de humanos depois de mais de dez dias do início da catástrofe, mas também salvamento de não humanos. Há que se ressaltar o trabalho intermitente, incansável dos voluntários de ongs e independentes que se arriscam na difícil tarefa de resgatar nossos irmãos “não humanos”. Há centenas de vídeos mostrando essas operações arriscadas pelas redes sociais. Gatos e cachorros sendo resgatados de cima de móveis no interior de casas alagadas, de cima de telhados, copas de árvores, varandas e alambrados. O mais triste é perceber que muitos foram abandonados no momento da fuga dos seus donos. Mas pior, ainda, são os que ficaram amarrados sem chance de escaparem para algum lugar mais seguro.


Neste momento, há uma superlotação nos abrigos temporários para animais e em São Leopoldo, por exemplo, onde a situação é alarmante com centenas de cães e gatos resgatados sem terem para onde ir. Alguns animais têm se reencontrado com os seus tutores nos abrigos e isso ajuda a desafogar esses lugares de socorro e amparo. Essa situação não será tão provisória quanto se imagina. Assim como as famílias resgatadas nos abrigos ficarão meses acampadas nestes locais, por não terem para onde ir, pois suas casas foram devastadas ou sua cidade não existe mais, esses animais também seguirão nos abrigos superlotados. Uma situação delicada e incômoda que demandará soluções e auxílio do governo, ongs, entidades diversas e voluntários. Há demanda de ração e água, casinha ou colchonetes para os animais. Um manancial de órfãos que, espero, sejam reencontrados pelos seus donos ou adotados por novos.


A chuva voltou hoje e não dará trégua até domingo, por isso ainda muitos outros se somarão aos cães e gatos resgatados, bem como ao cavalo Caramelo, porcos, bois e vacas. Na minha impotência só posso desejar sorte aos voluntários nesta busca pelos animais ilhados.


Se esta imagem onírica e digna de uma epifania num filme de Fellini, não fosse a expressão do nosso elo perdido com a Natureza, eu não encontraria melhor metáfora para essa absurda e maldita cisão. Que a insólita imagem do boi no altar suscite um pouco mais de empatia e consideração nossa pelos animais e pela natureza. Afinal fazemos parte dela em estreita e delicada simbiose. Que a potente imagem do boi, como símbolo de força e persistência, nos recorde do profundo sentimento de gratidão e respeito pelas forças da natureza da qual nos apartamos e para qual deveríamos retornar. Que a compaixão e a união prevaleçam.


*Imagem do boi no altar. Autor desconhecido.



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