O CULTIVO DE FALSAS CRENÇAS, POR NORA PRADO*
- Alexandre Costa
- 14 de abr.
- 9 min de leitura

Finalmente assisti a aclamada série ADOLESCÊNCIA na Netflix. Realmente um trabalho de fôlego, vigoroso e absolutamente oportuno para os nossos dias. Diante da onipresença das telas em nosso cotidiano, reconhecer os seus códigos, ferramentas e o seu poder de sedução e aprisionamento é uma tarefa casa vez mais necessária. Seu poder sobre a juventude, mais vulnerável e sem filtros para se proteger do seu potencial tóxico, passa a ser um compromisso de pais e educadores frente a um cotidiano dominado pelo excesso virtual na comunicação contemporânea. Entre tantas questões presentes na obra, o filme questiona o papel dos adultos diante das ameaças implícitas neste jogo, muitas vezes traiçoeiro e perversos para tantos jovens inseguros e, facilmente, sugestionáveis.
A fase da adolescência é, normalmente, marcada pelas óbvias e naturais inseguranças, fragilidades e temores pessoais frente aos códigos de condutas grupais. A princípio, todas as escolhas e comportamentos são moldados, validados e orientados a partir da chancela grupal, normalmente obliterada por preconceitos, julgamentos e punições severas. Uma fase da vida, invariavelmente, percebida como angustiante, para dizer o mínimo. Hormônios em ebulição, o corpo e a mente vão se transformando, rapidamente, revelando o adulto embutido no que antes fora um mundo habitado pela infância. A inocência dá lugar à dúvida, desconfortos e inseguranças típicas de quem está em profunda transformação. Não há como fugir nem ficar imune à essa turbulenta fase da vida. O perigo maior se apresenta quando isso é potencializado pelo julgamento constante que uma exposição em rede proporciona aos usuários. Crianças e jovens que, desde os dez ou doze anos de idade, já possuem o seu perfil ou contas em redes de instaram e face book. Uma verdadeira anomalia moderna, visto que a maioria dessas mesmas crianças usufrui de celulares e telas desde a mais tenra infância. Quando os pais, irresponsavelmente, ofereciam o próprio celular para distrair a criança “birrenta” ou “estressada” com quem eles próprios não queriam interagir nem se ocupar. Acabaram por encurtar a fase em que ela, a criança, deveria brincar sozinha ou com outras crianças, atuando e brincando em representações do mundo ao seu redor, vivendo no mundo protegido do faz de conta e, desenvolvendo habilidades futuras de interação com o próximo. Perder essa preciosa oportunidade representa uma futura deformação de percepção da realidade e dos meios para lidar apropriadamente com ela.
Preocupantemente a cultura da infância, com seus jogos e brincadeiras, deu lugar a uma solidão virtual mediada pelo descontrole e uso, sem limite, das telas e aplicativos eletrônicos gerando ansiedade e desligamento do mundo infantil. Alienando o sujeito da sua própria idade e necessidades. A sociedade atual está cometendo um verdadeiro crime ao interromper ou ceifar, definitivamente, essa importante fase da vida. Lugar e tempo de descobertas, invenções e ensaio para a futura vida adolescente e adulta. Ora, em meio a essa imersão, absolutamente desproporcional e violenta, é natural que essa geração passe a ter comportamentos cada vez mais disruptivos e antissociais como o abordado na minissérie.
Nela um menino, de treze anos, esfaqueia uma menina da sua idade depois de sofrer bullying virtual em rede, na qual é visto como “incel”, termo cunhado nos anos 1990, numa abreviação de “celibatários involuntários” (do inglês involutarycelibates) e se refere a pessoas que se descrevem como incapazes de ter um relacionamento sexual, embora desejem estar em uma relação. Em alguns casos essas ideias e rótulos resultaram em atos violentos como os acontecidos em 2021, quando Jake Davison, que divulgava muitas desses conceitos associados aos incels em suas redes, matou cinco pessoas no norte da Inglaterra. Homens que participam dos fóruns do universo masculinizado na internet, manifestam misoginia e uma sensação de frustração diante de um suposto direito ao sexo que acreditam ser negado pelas mulheres. Uma das falsas ideias divulgada nestes sites, pela série, é que por meio da “regra do 80/20”, 80% das mulheres se sentiriam atraídas por apenas 20% dos homens, ficando os demais sem chance. Na verdade, isso se trata de um grave problema de saúde mental que precisa urgentemente ser tratado.
No filme, Jamie Miller, interpretado brilhantemente pelo jovem ator Owen Cooper, é um rapaz com poucos amigos que passa boa parte do seu tempo, trancado no seu quarto, navegando por conteúdo da internet. Supostamente em segurança, ele tem pouca interação com os pais, que estão no quarto ao lado ou a irmã mais velha, numa típica família de classe média de uma cidade da Inglaterra. Ele se acredita feio e, a princípio, nega veementemente a sua participação no crime sobre o qual é o principal suspeito. O filme inicia apresentando o policial responsável pela captura do jovem, momentos antes da ação policial invadir a casa da família e levar Jamie, preso, para a delegacia. Numa fantástica técnica de plano contínuo, toda a ação transcorre sem um único corte e mostra a burocracia do estado neste primeiro momento quando, assim como os pais e a irmã, pensamos se tratar de um grave engano. Uma vez que o jovem, lindo, bom aluno e aparentemente inofensivo seria incapaz de matar alguém. Seu rosto angelical e sua frágil figura nos inclina a duvidar da sua acusação no assassinato da menina.
Mas a realidade da câmera do estacionamento, onde se deu o crime, foi gravada é mais forte e atesta a inequívoca participação de Jamie nele. O rapaz desfere sete facada ininterruptas sobre a jovem, que morre ali mesmo. Mesmo assim, o garoto nega o fato diante do pai, que entre incrédulo e atordoado, reconhece a gravidade do ignóbil ato do seu próprio filho. Resta a Jamie, agora, ser preso e ficar incomunicável enquanto os desdobramentos da investigação seguem em frente. É preciso encontrar a arma do crime, uma faca de cozinha.
O segundo episódio trata desse momento e abre as portas da escola, onde as crianças e jovens passam boa parte do tempo. Conhecemos a melhor amiga da vítima cujo comportamento resistente e arredio não colabora com o detetive. Um dos professores não consegue descrever, sequer, as suas impressões sobre o seu jovem aluno demonstrando uma flagrante alienação em relação a sua própria turma. Outro chega atrasado e não tem domínio sobre a turma. O filho do detetive, colega da menina assassinada, acaba se encontrando a sós com o pai e revela detalhes sobre o real significado dos comentários dela numa postagem de Jamie, como se ele fosse digno de ser um “incel.” Um dos amigos de Jamie é interrogado numa das salas da escola, mas se nega a responder sobre questões mais específicas relacionadas ao crime. Tempos depois, esse rapaz, cuja faca do crime era sua, vai fugir antes de ser interpelado, novamente, pelo agente policial. Os movimentos da câmera acompanhando um e outro personagem torna o episódio dinâmico e envolvente. Percebe-se claramente a desconfiança do policial, enquanto pai do rapaz, que provavelmente segue uma dinâmica comportamental e familiar semelhante ao de Jamie. O episódio termina com o policial convidando o filho para almoçarem juntos. Sim, é preciso interagir com os filhos, se inteirar das suas escolhas e preferências particulares, saber dos seus interesses. Embora seja uma tarefa difícil, quebrar o círculo vicioso da incomunicabilidade entre pais e filhos é tarefa fundamental para se conhecer mais a respeito do universo vivenciado pelo jovem.
O terceiro episódio é o mais dramático e intenso, pois investiga a personalidade de Jamie através da entrevista com uma psicóloga. Neste embate, não sem disputa nem conflitos explícitos, pelo poder e controle da situação, vemos um jovem com profundas distorções a respeito se si e da sua própria imagem enquanto masculinidade. Ele sabe o que fez e que pagará por isso, mas ainda nega ser o autor da tragédia. Provavelmente por ser tão doloroso e perturbador se assumir como o assassino da menina. Mais fácil e mais cômodo é se proteger dessa verdade avassaladora. Também é possível perceber o isolamento e solidão vivido pelo rapaz e seus dois outros amigos, que costumam vagar sem rumo pelas ruas da cidadezinha inglesa. Suas respostas a respeito do seu interesse sexual por mocinhas também estão longe da realidade e mostram que esses jovens são capazes de trocarem “nudes” antes mesmo de se conhecem, minimamente, assustador. Jamie testa os limites diante da psicóloga e a desafia por duas vezes sendo agressivo e ameaçador. Ela sai por um momento da sala e retorna para terminar a entrevista. Ao final vemos um jovem absolutamente sozinho diante do terror de se conhecer e si mesmo e assumir a culpa pelos seus atos.
No quarto e último episódio assistimos o que acontece treze meses depois da prisão de Jamie, enquanto todos aguardam pelo início do julgamento. É aniversário do pai dele e a família, aparentemente, está se reerguendo e seguindo a vida em frente, apesar de tudo. Entre a correspondência na mesa do café da manhã, o pai abre uma das cartas onde está um cartão de Jamie o felicitando pelo aniversário. Há um desenho do pai na capa. Ele se enternece com a lembrança do filho. Mas logo a paz familiar é quebrada quando a filha anuncia uma pichação inesperado com “Tarado” escrito em spray amarelo na lateral da van de trabalho do pai. O homem fica revoltado e corre atrás de dois rapazes que passam em frente a casa e gritam: “Tarado”! em alusão ao crime de Jamie. O pai também se indispõe com os vizinhos que observam, mas que nada fizeram para descobrir os autores do delito. A filha pega o celular da mãe e denuncia o crime a polícia enquanto o pai tenta limpar a carroceria da van com água e sabão. Impossível. Resolve sair para comprar produtos específicos para remover a tinta numa loja de ferragens. A filha e a esposa vão juntos pois ele receia deixá-las em casa à mercê de agressores anônimos. Combinam de ir ao cinema mais tarde. No trajeto para a loja, mais uma vez as estratégias de filmagem se desdobram para seguir na linguagem de take único e sem cortes. Conversam sobre quando o casal se conheceu nos tempos de escola e escutam música voltando a uma normalidade momentânea.
Chegando à loja o pai vai em busca dos produtos e a mãe e a filha vão as compras. Conversando com o jovem atendente, o pai é reconhecido como sendo o pai do assassino da garota. Ele se esquiva da conversa, mas o rapaz insiste em dizer que apoia Jamie e o considera inocente. O pai, visivelmente perturbado, sai da loja em direção da van enquanto a mulher, que acabou de comprar uma planta para casa, sai atrás junto com a filha. O pai reconhece os dois rapazes de bicicleta que gritaram “Tarado” na frente da sua casa de manhã e corre em direção a eles. Pega um deles pela gola da camisa e o ameaça com rigor. Joga a bicicleta longe e volta para o carro no estacionamento da loja. Ele abre a lata de tinta azul com uma fenda e simplesmente joga a lata sobre a pichação. A tinta atinge parte do vidro do carona. Borra grande parte da pichação em amarelo. Entram no carro e dirigem de volta para casa. No caminho, recebem uma ligação da penitenciária. É Jamie dando os parabéns para o seu pai. Eles conversam, brevemente, e Jamie diz que vai modificar o seu depoimento dizendo que irá se declarar culpado. Todos ficam emocionados e apreensivos. Jamie desliga, eles estacionam na frente de casa. A mãe fecha a porta e se debulha em lágrimas. Sobe para o quarto do casal onde o marido está sentado na cama. Conversam sobre o quão perto e ao mesmo tempo tão distantes estavam de Jamie. A mãe conclui que devem assumir e aceitar que talvez devessem ter feito mais pelo filho. Ambos se abraçam e choram. Ela desce para finalizar o café da manhã interrompido e o pai vai em direção ao quarto do filho. Abre a porta e entra. Se emociona em rever a paisagem de Jamie e desaba. A vida não é nem, nunca mais, será a mesma. A tragédia familiar que se abateu sobre eles transfigurou as suas vida para sempre. Será preciso conviver com essa mácula daqui para frente.
Saímos desta história com o coração pesado e a alma dilacerada. O pano de fundo que sustenta essa horrenda história é o mesmo sobre o qual estamos imersos e os nossos filhos, infelizmente. Há que se assistir e discutir com eles sobre essa obra que diz tanto sobre a sociedade atual. É preciso que nos comprometamos a cuidar melhor de nossas crianças deixando-as serem crianças pelo tempo natural desta fase delicada. É preciso retardarmos o ingresso no mundo das telas da internet por mais tempo, não é possível abreviarmos a vida de nossos jovens dessa maneira leviana e irresponsável. É preciso brincar e escutar as nossas crianças e jovens, é preciso disponibilizarmos nosso tempo para elas, para estar verdadeiramente junto com elas. É preciso devolver parte da infância e adolescência de modo mais sadio e amoroso para os nossos filhos sob pena de criarmos gerações de gente alienada e fragilizada, emocionalmente, com sérios riscos para a saúde emocional das gerações seguintes. É preciso cultivar a vida real em seus diversos aspectos, oferecendo relações de convívio e amizades reais. Contrapor o real ao virtual equilibrando a balança e dando meios para reconhecer o falso do verdadeiro. O alerta vermelho está dado, cabe a nós, pais e educadores nos comprometermos em modificar as nossas relações com eles.
Porto Alegre, 13 de abril
