por Walter Falceta (*)
Hoje, aniversário de 77 anos da maior cantora do Brasil em todos os tempos, a gaúcha Elis Regina, que excepcionalmente morreu duas vezes, mas continua eternamente viva em nossos corações.
Em 1972, foi "morta" pelo compa cartunista Henfil e enterrada em seu Cemitério dos Mortos Vivos do Cabôco Mamadô, um campo santo maldito do Pasquim, onde eram sepultados os traidores da causa popular.
O motivo: Elis Regina havia gravado um comercial de TV chamando os brasileiros a cantarem o Hino Nacional no 7 de Setembro de 1972, ano do Sesquicentenário da Independência, utilizado como mote de propaganda do governo militar.
Naquele mesmo ano, Elis interpretou a composição de Joaquim Osório Duque Estrada e Francisco Manuel da Silva na Olimpíada da Semana do Exército. Para parte da esquerda impaciente proto-canceladora, era prova de que Elis havia virado casaca.
A realidade, no entanto, exibiria uma Elis ainda perfeitamente afinada com a luta pela liberdade e pela democracia. Para ela, o governo brasileiro da época era composto por gorilas.
Elis moveu mundo e fundos, por exemplo, para encontrar o pianista Francisco Tenório Junior, que desapareceu em Buenos Aires, em 1976.
Toquinho e Vinicius de Moraes realizavam um show na cidade e o músico os acompanhava. Uma noite, saiu para comprar remédio para asma em uma farmácia. Confundido com um subversivo, foi detido e até hoje não se sabe de seu paradeiro.
Elétrica-cinética, Elis costumava mover os braços enquanto cantava. Daí, os apelidos de Elis-Cóptero e Élice-Regina. No espírito, a mesma inquietação, a vontade de agir em nome de justiça e solidariedade.
Dela ergueu-se a voz da luta pela Anistia, no fim dos anos 70, capaz de enviar ao Brasil a mensagem de "O Bêbado e a Equilibrista", de João Bosco e Aldir Blanc, em que o personagem principal era justamente o desterrado Betinho, o irmão do Henfil.
Em 1979, Elis Regina liderou os músicos Fágner, Belchior, Gonzaguinha, João Bosco e Carlinhos Vergueiro em shows cujo objetivo principal era angariar recursos para o Fundo de Greve do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC.
Afeiçoada ao líder Luiz Inácio, filiou-se ao Partido dos Trabalhadores (PT) em 1981. Acreditava que a coragem dos operários, aliada à ternura dos artistas, podia construir um país mais justo e solidário, para sempre livre da censura, do racismo e de todos os tipos de opressão.
Elis Regina foi torcedora do Grêmio, por se dizer fascinada pela composição de cores do time de Porto Alegre. Nessa época, no entanto, não era fanática pelo esporte.
Depois, começou a compreender a importância do jogo na constituição da cultura nacional. Gravou "Aqui é o País do Futebol", de Fernando Brant e Milton Nascimento, para o filme "Tostão, a Fera de Ouro".
Depois, em 1973, misturou política e futebol em "Meio de Campo", canção de Gilberto Gil para homenagear Afonsinho, jogador comprometido com as causas da esquerda.
Essa fascinação se consolidou em São Paulo, quando começou a frequentar anonimamente o Morumbi, em busca de divertimento e inspiração. Ali, encantou-se com a torcida do Corinthians.
Afirma-se que a conversão se consumou com as histórias alvinegras contadas por Adoniran Barbosa e com as explicações sociológicas de Toquinho para a mística do corinthianismo.
Vez por outra, gorrinho na cabeça, às vezes fantasiada de homem, a Pimentinha ia ver o seu Coringão.
Um dia, encontrou Henfil e explicou-lhe o ocorrido em 1972. Se não obedecesse as ordens, teria sido presa e processada, talvez sofresse a tortura. Sua família fora também ameaçada pelos militares. Então, cantara...
Henfil e Elis acabaram por trabalhar juntos, tornaram-se amigos e lutaram unidos por um Brasil melhor. Foi quando ressuscitou e largou o Cemitério dos Mortos Vivos do Cabôco Mamadô.
Com o cartunista, discutiam futebol: ele, flamenguista doido; ela, corinthiana apaixonada, botando sempre a mão no peito para falar de seu time.
Em 1981, Elis se engajara ainda mais na luta por democracia. Certamente, teria sido a voz do grande movimento por Diretas-Já que, na sequência, mobilizaria o Brasil.
Em janeiro de 1982, no entanto, Elis Regina morreu mais uma vez. Oficialmente, afirma-se que foi por conta da ingestão de álcool e drogas. A Pimentinha estaria buscando fugir de uma realidade que a deprimira e esgotara.
Separada de Cesar Camargo Mariano, encetou alguns namoros. Enfim, começou um relação séria com o advogado Samuel Mac Dowell de Figueiredo, com quem planejava se casar.
Um dia, no entanto, se desentenderam numa conversa telefônica. O telefone ficou mudo. Mac Dowell correu até a casa da cantora e encontrou o quarto fechado. Encontrou-a caída perto do telefone. Carregou-a nos braços, pegou um táxi e a levou até o Hospital das Clínicas. Lá, foi dada como morta.
A médica que atendeu Elis no HC declarou que a cantora chegara já sem vida. Alegou não ter emitido o atestado de óbito por considerar-se impossibilitada de concluir por uma morte natural.
Dessa forma, o corpo foi remetido para o Instituto Médico Legal. Efetuaram investigações em seu corpo pequeno. O laudo médico foi assinado por José Luiz Lourenço e Chibly Hadad. O diretor do IML era Harry Shibata, médico envolvido nos eventos que se sucederam ao assassinato do jornalista Vladimir Herzog pela repressão política.
Coincidências marcam o caso. Segundo Edu Lobo, o laudo foi uma vingança de Shibata contra Mac Dowell, em razão do caso Herzog (o marido da Clarice em prantos citada em "O Bêbado e a Equilibrista"). O advogado e outros colegas haviam solicitado a condenação da União pela morte do jornalista, expondo assim a trama farsesca comandada pelo legista.
Ainda pairam vagas dúvidas sobre o ocorrido, mas amigos próximos e os dois biógrafos acreditam que o laudo corresponde à realidade. A cantora teria mesmo sucumbido a uma dose fatal de cocaína, provavelmente misturada com uísque.
Passados mais de 33 anos, Elis vive em seu paraíso particular. Provavelmente, ainda discute humanidades com Henfil e seu irmão Betinho. Deve torcer ao lado de Sócrates. Em noites silenciosas, se você ficar quietinho, vai ouvi-la. Equilibrando-se sobre a nuvem que passa, vem cantar esperança para as brasileiras e para os brasileiros."
(*) Walter Falceta é jornalista e um dos fundadores do Coletivo Democracia Corintiana (CDC).