top of page
Foto do escritorAlexandre Costa

PASSEANDO COM NEUSA DEMARTINI, POR NORA PRADO (*)


Acabo de ler dois livros da escritora, professora e jornalista, Neusa Demartini, Quatro Mulheres e Segredos da Rua Mundo. Li ambos “de uma sentada”, como se diz, pois fiquei absorvida do início ao fim por cada romance dessa autora gaúcha que eu ainda não conhecia. Leitura agradável e direta, não apenas porque são romances curtos, mas porque são narrativas bem urdidas, envolventes e cuja trama vai nos surpreendendo aos poucos. Em Quatro Mulheres, acompanhamos a vida de Afrânio, juiz aposentado e suas quatro mulheres, Martha, Yolanda, Heike e Vania, amantes em níveis diferentes, com quem este gaúcho, que vive em São Paulo, se relacionou ao longo da vida. Trata-se da clássica história do homem criado para casar com a santa e procurar diversão com a prostituta, que escolhe a mulher a dedo para ser esposa e criar a família, e que, vai mantendo laços afetivos compartimentados com cada uma delas. Resquícios de um machismo que, infelizmente ainda predomina, fruto de um patriarcado arcaico no qual as mulheres são apenas coadjuvantes.


Neusa pinta bem o panorama de uma época na qual as mulheres obedeciam ao roteiro pré-fixado pela família que consistia em fazer um bom casamento, com um bom partido, engravidar e cuidar da criação dos filhos e da casa, sem nenhum projeto de realização profissional e pessoal que competisse com o do marido. Todas elas se encontram no funeral de Afrânio e terão que aceitar a existência umas das outras.


Martha, a esposa escolhida para o papel de parideira e organizadora do lar, surpreende-o ao lhe pedir o divórcio, depois de inúmeras traições do marido. Yolanda, a segunda mulher com quem ele assumiu o relacionamento perante os filhos e a família, decide que é melhor viverem em casas separadas, num arranjo mais contemporâneo. Ambos se conhecem quando já estão maduros e com uma vida própria bem estabelecida e organizada. Heike, é a antiga conterrânea por quem ele e ela foram apaixonados na juventude e se reencontram em São Paulo. Das quatro, é a única que fez uma carreira profissional e foi em busca dos seus sonhos. Ainda assim, submete-se aos dias e horários determinados por Afrânio para terem os seus encontros amorosos. Finalmente, Vania, a empregada de Afrânio, desvirtua um pouco o equilíbrio do quarteto e, ambiguamente, desfruta de alguns privilégios que as outras não tem. De toda forma, segue sendo a mais humilhada de todas em função da classe social e sua função profissional. Cada uma delas é descrita e catalogada por Afrânio como um inseto específico, demonstrando o caráter sedutor, controlador e possessivo do juiz. Suas conquistas amorosas são analisadas friamente como se as catalogasse como pequenos troféus. Um homem discreto, reservado, com certa cultura geral e erudição operística que prefere a solidão. Obra interessante por refletir, com cores vivas e verossimilhança, a realidade de uma geração, mas com leveza, ironia e senso de humor.


Segredos da Rua Mundo, tem um tom mais denso e misterioso que só revela, plenamente, o seu segredo no final. Numa espécie de acerto de contas com o passado, dois irmãos se reencontram num passeio pela rua do antigo bairro em que cresceram. A descrição detalhada de cada casa, com seus personagens e as relações familiares específicas com os protagonistas, tecem um cenário rico de tipos que cruzam com a família dos irmãos. Com o pano de fundo da ditadura militar brasileira e suas influências diretas com a sua irmã mais velha e um tio ligado ao DOPS, vemos como esse passado recente ainda está impregnado nas relações sociais atuais. Mulheres submissas ao lar, que fofocam diariamente sobre a vida alheia da vizinhança, enquanto varrem as suas calçadas da frente de casa, mostram um cotidiano aparentemente calmo em contraste com as mudanças que vinham acontecendo em relação aos costumes da sociedade brasileira e um regime político autoritário e opressor.


Há remorso, culpa e ressentimento num caldo afetivo, muito mal resolvido, entre os irmãos que vai se descortinando à medida que eles avançam neste passeio onde a modernidade parece ter tomado conta, desfigurando a geografia e arquitetura da rua da infância e juventude de ambos. Novamente temos uma crítica ao comportamento patriarcal e ao machismo dominante, da época, que destruiu milhares de vidas, deformando atitudes e comportamentos em nome de uma moral duvidosa e frágil.


Impossível não lembrarmos das nossas próprias família e relações com nossos parentes e amigos próximos. Dois romances que eu recomendo para quem deseja conhecer esta escritora que domina o seu ofício com concisão e simplicidade nos envolvendo com suas tramas e personagens bem elaborados.


Porto Alegre, 22 de abril de 2022.


(*) Nora Prado é atriz, poeta, professora de interpretação para Teatro e Cinema, atuou na Escola das Artes do Palco - SP.

bottom of page