O Observatório do Ensino Médio do Rio Grande do Sul e o Grupo de Estudos de Políticas Públicas para o Ensino Médio da FACED/UFRGS (GEPPEM) divulgaram uma carta aberta com críticas à implementação da reforma do Ensino Médio no estado, na quarta-feira, 17 de novembro. O documento é resultado de uma série de debates e foi escrito por professoras/es, pesquisadoras/es e estudantes. Além de romper com a estrutura da educação básica consolidada pela LDB 9.394 de 1996, impactando na formação e na vida de milhões de jovens, a proposta de reforma ignora os prejuízos causados pelos dois anos em que as escolas ficaram fechadas em decorrência da pandemia de coronavírus. Na carta, os signatários ressaltam o fato da comunidade escolar não ter sido consultada e manifestam-se pelo adiamento e possível suspensão da reforma, que começará a ser implementada em 2022
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Carta à Sociedade Gaúcha sobre a Reforma do Ensino Médio
O Observatório do Ensino Médio do Rio Grande do Sul, que reúne professoras/res, pesquisadoras/es e estudantes das Escolas Estaduais de Ensino Médio, Universidades e Institutos Federais do RS, Universidades Comunitárias e UERGS, e o Grupo de Estudos de Políticas Públicas para o Ensino Médio da FACED/UFRGS (GEPPEM), tornam pública sua posição em relação à implementação da Reforma do Ensino Médio no Estado do Rio Grande do Sul.
Esta reforma, imposta pela Medida Provisória (MP) 746/2016, transformada em Lei nº 13. 415/2017, sob a perspectiva de superar a dispersão curricular vigente, executa um processo que fragiliza a formação humana geral, centrando o currículo nas disciplinas de matemática, português e língua inglesa e convertendo todas as outras áreas de formação em estudos, práticas e itinerários a serem cursados de acordo com a disponibilidade das escolas e dos sistemas de ensino.
É importante destacar que qualquer reforma, particularmente desta etapa que é a última da educação básica, precisa partir de um diagnóstico que aponte, por um lado, todos os desafios aos quais os jovens estão submetidos, e por outro, as experiências exitosas realizadas no âmbito das redes de ensino. Os dois últimos governos estaduais não realizaram o diagnóstico educacional e sequer monitoram a implementação das Metas do Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024) e do Plano Estadual Educação (PEE).
Considerando-se, especificamente, o Ensino Médio (EM) no Brasil, colocam-se em perspectiva os desafios da universalização ou do não acesso, da evasão escolar, das repetências, agravados pela entrada precoce e precária de jovens no mundo do trabalho. Sendo assim, qualquer mudança nesta etapa precisa contemplar políticas públicas educacionais que alarguem o acesso, ajudem a manter a juventude na escola com aprendizagens significativas, sem a necessidade de priorizarem o sustento pessoal e familiar.
Tais processos necessitam de ampla articulação e sustentação financeira e pedagógica da Secretaria Estadual de Educação (Seduc-RS), sobretudo na rede estadual, cuja situação concreta das escolas e dos professores é de miserabilidade. Portanto, deixar esta responsabilidade nas mãos de gestores, das escolas, de professores e estudantes, corresponde a eximir o Estado de sua responsabilidade com uma educação pública de qualidade social.
Uma das alterações da reforma é a proposição de cinco Itinerários Formativos, que corresponderiam à parte flexível do currículo, e que seriam, em tese, objeto de escolhas dos estudantes. A realidade das escolas do RS, contudo, demonstra a limitação para estas ofertas, seja em relação a professores das áreas ou a condições físicas e pedagógicas para sua efetivação de todos os itinerários, o que limitaria muito as opções formativas disponibilizadas aos alunos para seus projetos educacionais e de vida. Além disto, a substituição de professores inexistentes por pessoas consideradas de “notório saber”, figura prevista na Reforma, fragilizaria ainda mais os processos educativos nas escolas estaduais, pela volatilidade destes profissionais e desvalorização da carreira e profissionalização docente. Admitir a possibilidade de atuação de profissionais que não tenham formação pedagógica específica, agrava ainda mais, conforme mencionado, a desvalorização profissional, econômica e social dos professores, permitindo desempenho da docência a pessoas sem conhecimento dos processos de ensino-aprendizagem, sem conhecimento didático-pedagógico, permitindo o amadorismo educacional e a maior desqualificação da educação gaúcha.
O estreitamento da base da formação geral e a imposição de um ou outro percurso curricular no início do Ensino Médio representam graves danos à formação das juventudes tanto pela precocidade de profissionalização compulsória, quanto pelo aprofundamento do modelo dual de Ensino Médio que sempre caracterizou a educação brasileira. Na rede pública, responsável por 85% dos estudantes, será ofertada uma formação aligeirada e precária para os pobres, enquanto, na rede privada é garantido o acesso à educação geral e integral para os setores privilegiados que continuarão a ser preparados para ocupar as melhores posições e funções na sociedade. A desigualdade entre estudantes de escolas públicas e privadas será ampliada e aprofundada.
A reforma, também não considera milhares de jovens que precisam trabalhar para ajudar a família em um momento que o país atinge cerca de 14 milhões de desempregados e que precisariam receber oportunidades alargadas de formação e condições materiais para continuar estudando.
Chamamos a atenção da sociedade gaúcha para um projeto de educação que reforça a desigualdade, mantendo e aprofundando dois modelos de educação que afrontam o preceito da igualdade das condições de acesso e permanência na escola, previsto na Constituição Federal: de um lado estudantes que têm acesso à educação em escolas privadas, que preparam as pessoas para ocupar lugares destacados na sociedade, como juízes, médicos, advogados, promotores, procuradores e, do outro lado, jovens que precisam trabalhar para sobreviver e que em escolas públicas mal equipadas e sem condições de infraestrutura, com professores precarizados em sua situação salarial e vivencial, não terão oportunidades de uma formação ampla para, no futuro, também poderem percorrer os caminhos valorizados pela sociedade em termos de escolhas profissionais.
É possível que a manutenção de tal característica, impositiva e capaz de dar sustentação a uma sociedade desigual e injusta, explique a pressa para a realização desta reforma, apresentada pelo governo Temer por meio de medida provisória e indiferente a todos os movimentos que aconteciam a partir do Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio, envolvendo o próprio governo federal e todos os estados da Federação, além do Distrito Federal.
Defendemos que o encaminhamento das mudanças incorpore as lições da própria educação pública que envolvem o Ensino Médio Integrado, inovador, politécnico, por alternância, investindo na interdisciplinaridade que contempla as quatro grandes áreas do conhecimento, em diálogo com o mundo da vida, leia-se da ciência, das tecnologias, da cultura, do trabalho e dos esportes, conforme disposto na Resolução 340/2018, do Conselho Estadual de Educação (CEEd-RS), que define as Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio no Sistema Estadual de Ensino no RS, documento, oficial ainda ausente dos debates e das propostas.
O currículo escolar – aspecto central da reforma – não é algo isolado. Pensar o currículo é pensar o projeto educacional e o próprio projeto de sociedade, e neste sentido, o lugar que a sociedade reserva para seus jovens. Alterar simplesmente o currículo sem aumentar os investimentos na escola pública, na valorização e formação dos professores, na melhoria das condições de trabalho e estudo nas escolas constitui uma irresponsabilidade e desonestidade política com as/os estudantes e as famílias.
O projeto em implementação, neste momento, no RS desobriga o Estado de suas responsabilidades legais, previstas na legislação brasileira, especificamente em relação à universalização da educação básica contida na Emenda Constitucional 59/2009 e, a longo prazo, abre possibilidade para a redução de investimentos em educação, promovendo assim, um abismo entre a educação pública e privada, incentivando a privatização e o repasse de fundos públicos para mantenedoras e fundações privadas, por meio de parcerias, especialmente para oferta dos itinerários, na modalidade de educação a distância (EAD), bem como formação de professores e materiais didáticos (livros, plataformas, softwares, apostilas).
As perguntas que somos todas/os desafiadas/os a responder são: quem continuará ocupando lugares de destaque na sociedade em um futuro próximo? Os jovens, filhas e filhos das classes trabalhadoras, que na escola pública estadual têm sua única possibilidade de formação, poderão percorrer os mesmos caminhos profissionais que as/os jovens das escolas privadas que têm, com acesso a laboratórios, aulas de diferentes línguas estrangeiras, professores bem remunerados e em processos permanentes de formação, ginásios de esportes, bibliotecas amplas e modernizadas, acesso a redes virtuais? Que percursos formativos a sociedade reserva para jovens que trabalham desde os 14 anos, ou antes, para ajudar na renda familiar?
Como propor uma reforma profunda no Ensino Médio sem considerar as condições materiais das escolas estaduais e as condições de trabalho das/os professores impedidos de uma formação permanente por conta da situação de penúria que a maioria vivencia? Como propor uma reforma do Ensino Médio sem participação efetiva de toda comunidade escolar? Sem formação continuada para professoras/es, salários dignos, infraestrutura com laboratórios de informática, ciências, bibliotecas, salas de cinema e vídeo, quadras de esportes, refeitórios, dentre outras possibilidades?
Como propor uma reforma sem considerar as experiências já vivenciadas na rede estadual, como se tudo começasse verticalmente, de cima para baixo e agora?
Não podemos condenar toda uma geração de jovens a um projeto que desloca responsabilidades e coloca sobre estudantes a responsabilidade de construir seu futuro, de forma individual e competitiva, como se o conjunto de condições de vida e os projetos coletivos de sociedade não fossem importantes. O acesso à educação básica de qualidade é um direito que deve ser assegurado pelo Estado.
A Seduc-RS, deliberadamente, não considerou nenhum destes elementos e executa uma política exógena, inspirada na experiência criticada de São Paulo, como se fosse possível ignorar a vida real das/nas escolas. Além disso, não considerou as graves consequências da pandemia no país e no Estado do RS, que exigem capacidade de acolhimento para o retorno gradual à escola. Também não considerou o congelamento de sete anos dos salários dos educadores que deprecia as condições materiais de vida e, também não considerou as péssimas condições materiais das/nas escolas estaduais que requeriam um investimento prévio a implementação da reforma em curso.
O Conselho de Educação, apesar de algumas escutas formais, não incorporou as contribuições recebidas e homologou o Referencial Curricular Gaúcho (RCG-EM), instituindo, através do Parecer nº 003/2021 e da Resolução nº 361/2021, a reforma do Ensino Médio, enquanto etapa final da educação básica e suas modalidades, como referência obrigatória para elaboração dos currículos de todas as instituições integrantes do sistema estadual de ensino. Basicamente, o CEEd limitou-se a tomar conhecimento da proposta enviada pela Seduc-RS.
Uma reforma desta magnitude que rompe com a estrutura da educação básica consolidada pela LDB 9.394 de 1996, causando profundos impactos na formação e na vida de milhões de jovens, começará a ser implementada em 2022, em plena pandemia do Covid-19, após dois anos de escolas fechadas, sem escuta da comunidade escolar e sem participação dos estudantes.
Tal como está proposto, o “novo ensino médio” configura uma traição às gerações de jovens, que estiverem a ele submetidas, por condená-las a não terem as ferramentas básicas de conhecimento para a cidadania política e econômica. A chamada arquitetura curricular proposta, liquida o direito universal à formação básica e, portanto, de qualidade comum para as juventudes. Quando voltarem plenamente às escolas, as/os estudantes perceberão que a “liberdade de escolha” e o “protagonismo juvenil” não passam de propaganda enganosa e que a verdadeira liberdade de escolha será privilégio de poucos.
Resistir é preciso, implementar do modo proposto não é necessário. Cabe-nos resistir em todas instâncias e escolas e mostrar a estudantes e comunidade o sentido desta traição e, em conjunto com sindicados, entidades, instituições científicas, movimentos sociais e culturais e partidos políticos conseguir apoio jurídico para o adiamento e possível suspensão de sua implantação.
Sem a participação efetiva das comunidades escolares e, sobretudo dos educadores e estudantes não acontecerão as mudanças necessárias para reconstruir o Ensino Médio gaúcho.
Porto Alegre, novembro de 2021.
Observatório do Ensino Médio do RS www.ufrgs.br/observatoriodoensinomedio-rs