top of page
Foto do escritorAlexandre Costa

SOBRE RACISMO, SEXISMO, FRONTEIRAS EPISTÊMICAS E RACIONALIDADE MODERNA

Em um de seus ensaios menos conhecidos, chamado Observações sobre o sentimento do belo e do sublime (1764), o filósofo Immanuel Kant disserta longamente sobre o gosto, os padrões morais e estéticos próprios da “natureza humana”, e não hesita em afirmar que “os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo…. Já entre brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão essencial é a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença de cores”.

(por Natalia Pietra Méndez e José Rivair Macedo)

Este texto foi motivado pela leitura do artigo “Irracionalismos Identitários”, do Prof. Rogério Severo (Departamento de Filosofia/UFRGS), publicado na Revista Estado da Arte em 08/09/2020.


Não, não se trata de argumentar uma vez mais sobre o componente racista e etnocêntrico do “Iluminismo”, nem de supor que o referido componente fosse algo isolado na Europa moderna. Isso já foi sobejamente tratado em estudos amplamente fundamentados em dados empíricos, como aqueles assinados por Pierre Boulle (1990), Stephen Jay Gould (1998), Laurent Dubois (2006) e Susan Buck-Morss (2011), entre outros(as). Poder-se-ia argumentar que os referidos traços desqualificantes empregados por Kant para definir a “natureza” dos “negros” encontravam-se arraigados em seu tempo, como estereótipos. Isto seria suficiente para que fossem “acriticamente” reproduzidos pelo autor do tratado Crítica da razão pura (1781) – um dos pilares essenciais do pensamento iluminista? Mas como explicar a afirmação acima se um de seus colegas de profissão, o filósofo Amo Guinea Afer (1703-1783), tinha sido escravizado no litoral africano antes de obter a própria liberdade e dar início à brilhante carreira acadêmica que o levou a lecionar na Universidade germânica de Iena até o ano de 1750?

Ao se referir aos “negros”, aos “pretos”, Kant ignorava outras categorizações que não fossem a selvageria e a barbárie, aprisionando pessoas e grupos humanos em categorias mentais que pouco devem ao raciocínio crítico. Sem nunca ter saído de Königsberg, aquele filósofo encontra-se autorizado a teorizar sobre o sentido “cosmopolita” da história, que, sabemos hoje, não ia além do horizonte de possibilidades da cultura europeia, e não da humanidade, que é bem mais diversa e complexa. Não deixa também de ser sintomático que naquele mesmo contexto intelectual Friedrich Hegel, outro pilar essencial do “iluminismo”, negava à África as condições de ter uma história própria e teorizava sobre a dialética do amo e do escravo, mas nada dizia acerca da luta revolucionária dos escravizados da colônia de São Domingos, que, por sua própria conta e risco, lutavam contra os defensores da Revolução Francesa por sua autodeterminação, fundando a República do Haiti.

Outra oportunidade de demonstrar as implicações éticas e morais do pensamento “iluminista” e seus limites no que se refere ao universo feminino aparece no mesmo ensaio de Kant, citado no princípio desse artigo, na seção em que ele comenta os efeitos do belo e do sublime em relação ao sexo feminino, e em certo trecho assevera: “O belo entendimento elege como objeto tudo aquilo que é muito aparentado com o sentimento refinado, e abandona especulações ou conhecimentos abstratos – úteis, porém áridos – ao entendimento diligente, sólido, profundo. Por isso, a mulher não aprenderá geometria; e, do princípio de razão suficiente ou das mônadas, saberá apenas o quanto for necessário para perceber o sal das sátiras cristalizado pelos pensadores superficiais de nosso sexo… No aprendizado da história, não encherá a cabeça com batalhas, e, no de geografia, com fortalezas; pois a pólvora dos disparos lhe convém tão pouco quanto o almíscar convém aos homens”.

Mas é possível ver além dos cânones da filosofia iluminista, que negava às mulheres a racionalidade. A escritora francesa Olympe de Gouges (1748-1793) dizia que poderia ser capaz de agir como um homem, questionando, no próprio século XVIII, o discurso da diferença sexual, como demonstrou Joan Scott no livro Only Paradoxes to Offer: Frech Feminist and the Rights of Man (1996). Já, Mary Wollstonecraft (1759-1797), filósofa inglesa contemporânea de Olympe, apoiava-se no discurso da diferença sexual para afirmar a necessidade de que a educação fosse estendida às mulheres, para que as mesmas, educadas com a mesma régua dos homens, fossem capazes de melhor servir à nação como mães e esposas. Em escritos que são considerados precursores para o feminismo, notam-se matizes e contrastes no significado do que era ser mulher e seus lugares sociais. O fato de que as obras destas e de tantas mulheres ainda sejam marginalizadas dentro de boa parte das universidades atesta um processo histórico de exclusão de pensadoras e pensadores que colocaram em xeque a ideia de sujeito universal, premissa da modernidade.

Kant não foi o primeiro e nem será o último a testemunhar os impasses da razão ocidental moderna. E é bom que se atente para os qualificativos associados a este traço cultural distintivo que é a razão, pois esta que aqui debatemos não deve ser confundida com a razão grega antiga nem com a razão islâmico-oriental de Avicena e Averrois – assentadas no conceito estruturante de paideia. Estas razões não parecem ter privilegiado a experimentação, a classificação e a hierarquização dos fenômenos e, sobretudo, não se caracterizaram pelo pragmatismo. Tais traços, todavia, distinguem o modelo da razão ocidental, herdeira do mundo medieval, que na modernidade encontrou nos princípios da ciência meios de reivindicar para si uma posição inquestionável, num lugar privilegiado, acima de julgamentos mas munida do baraço e do cutelo no tribunal do conhecimento. Esta forma de perceber a razão e a ciência, aliás, tem sido igualmente submetida a um debate que o Prof. Rogério Severo parece não levar em conta. Com o filósofo beninense Paulin Hountondji, no livro La rationalité, une ou plurielle? (2007), caberia perguntar se quando nos reportamos a “razão”, “racionalidade” ou “irracionalidade” compartilhamos pressupostos “claramente” definidos, e, em caso positivo, seria igualmente necessário questionar quais suas premissas e como identificá-las.

É própria dessa forma de conceber a razão a faculdade da escolha, ainda que, na operação, prevaleçam leituras seletivas e muitos esquecimentos. Ao destacar as palavras sensíveis da liderança negra incontestável que foi o Reverendo protestante Martin Luther King Jr., poderia parecer aos incautos que este sintetizasse as aspirações dos movimentos negros norte-americanos de seu tempo sobre cor e raça, o que não é o caso, e bastaria cotejar suas ideias e ações com as do afro-muçulmano Malcom X e dos Panteras Negras para verificar que as coisas já não eram bem assim naquela época, nem nos Estados Unidos, nem na Europa e nem na África. A lista de teóricos da negritude e da consciência negra é vasta, e inclui intérpretes com posições diversas entre si, como Aimé Césaire, autor dos célebres Discurso sobre o colonialismo (1954) e Discurso sobre a negritude (1987), e o sul-africano Steve Biko, autor, em pleno regime do Apartheid, da coletânea Escrevo o que eu quero (1975), onde aparece pela primeira vez teorizado o conceito de “consciência negra”. No mínimo convirá admitir que a palavra “negro” é polissêmica, abrangente e aberta a inúmeras vicissitudes, conforme demonstrou o cientista social Achille Mbembe em seu livro Crítica da razão negra (2014). O que significa que ser negro não supõe apenas uma resposta, mas inúmeras, uma vez que a referida categorização, inventada pelo branco, cumpriu durante muito tempo o papel de representar a negação da humanidade, a corporificação do “não-ser”. Não obstante, cabe lembrar ainda que não apenas a suposta identidade racial foi/é a responsável por manter uma unidade entre os ditos grupos negros, e que seus projetos políticos compartilhados configuraram e configuram (novos) movimentos sociais, como bem nos lembra a filósofa afro-norte-americana Angela Davis, em seu livro Democracia da Abolição (2009).

Ao inserir distintos movimentos sociais contemporâneos que a partir da década de 1960 ampliaram a pauta da agenda pública na rubrica “identitária”, impingindo-lhes rótulos desgastados como os do “irracionalismo” e da “cegueira religiosa”, os argumentos apresentados no artigo aqui debatido fazem supor que aqueles(as) assim classificados(as) compartilham ideias essencialistas e homogêneas acerca de quem são e do que defendem. Teria o autor consciência de que isso apenas ocorre no momento a partir do qual cordões sanitários demarcam fronteiras entre o que é ou não o conhecimento, a razão e a ciência? Teriam outros importantes teóricos do pensamento negro, como Frantz Fanon, Cheikh Anta Diop, e os brasileiros Abdias Nascimento, autor de O genocídio do negro brasileiro (1978), e Guerreiro Ramos, autor do artigo “Patologia social do branco brasileiro” (1955), compartilhado as mesmas premissas de Martin Luther King Jr.? Há décadas os(as) negros(as) compreenderam que já não se tratava mais de falar “para” os(as) brancos(as) para afirmar sua subjetividade, e começaram a falar “sobre” os(as) brancos, reivindicando para si um poder de definição cujos termos não dependem de validação ou de chancela, mas de reconhecimento.

No caso do conceito contemporâneo de “raça”, ao contrário do que supõe o Prof. Rogério Severo, sabe-se bem que, após pelo menos sessenta anos de estudos acadêmicos consolidados no Brasil e no exterior, há bem mais que duas definições aceitas. Faz tempo que os especialistas deixaram de se preocupar em definir o que vem a ser raça, preocupando-se em observar e analisar a maneira pela qual o fenômeno é considerado em diferentes sociedades e em diferentes contextos. Raça, racismo, diferença fenotípica e cor não são alheios aos imperativos dos movimentos da história, tendo sido empregados em determinados momentos para produzir desigualdades, e noutros, para afirmar diferenças. Daí que renomados especialistas, como Peter Wade, e Ellis Cashmore, em seu Dicionário de relações étnicas e raciais (2000), defendam a importância do conceito de raça para a compreensão das diversidades, diferenças e desigualdades que são de caráter político, cultural e econômica. Estas dimensões levam a que, nos dias atuais, a rigor, o fenômeno seja reconhecido não em sua dimensão biológica mas em sua dimensão social.

No campo dos estudos sobre gênero e sexualidade, se nos anos 70 as investigações não questionavam a realidade do sexo biológico, isso começou a mudar à medida que a própria noção de diferença binária foi utilizada para restringir direitos às mulheres e pessoas LGBTQIA+. Em 1949, Simone de Beauvoir (1908-1986) já abriu o caminho para tal transformação política e epistemológica, ao afirmar que não há nenhum destino que defina o que é ser mulher. Na época, ela não foi bem recebida nas universidades, nem mesmo nos cursos de filosofia que, aliás, historicamente têm sido refratários às teóricas feministas.

Na década de 1980, pesquisas no campo da história da ciência evidenciaram que corpos humanos são altamente complexos e a biologia não tem uma única resposta para compreender se existe um fator determinante do sexo, da identidade de gênero e da sexualidade. Para ficar apenas nas ciências biológicas, é possível pensar que as respostas estão nos cromossomas, na presença de marcadores hormonais ou, ainda, em características anatômicas dos órgãos reprodutores e, dependendo da área de formação e do estudo, uma ou outra destas variáveis é enfatizada. Nossos entendimentos sobre sexo biológico não acontecem fora da cultura, não podem ser respondidos por uma perspectiva ontológica. As pesquisas, em todas as áreas de conhecimento, são produzidas a partir de mediações com as nossas crenças e suposições sobre gênero, como atesta o importante estudo da bióloga e historiadora Anne Fausto-Sterling Dualismos em Duelo: gênero, política e a construção da sexualidade (2000).

Tais estudos têm demonstrado que se a biologia é um dos fatores que pode contribuir para uma definição do que seja sexo(s), certamente não o faz estabelecendo o binarismo sexual e de gênero como única resposta possível. Em Problemas de Gênero (2003), Judith Butler assevera que o binarismo é uma ordem compulsória que apenas reconhece os gêneros inteligíveis, ou seja, aqueles que instituem e mantém certa coerência entre o sexo, o gênero, a prática sexual e o desejo. Portanto, quando alguém afirma que o “sexo” é uma realidade biológica, nega-se, em última instância, a existência de tantas outras formas de ser/estar no mundo, relegando estes corpos à condição de abjetos, anormais, doentes ou perversos.

É no cruzamento das noções de gênero, sexo e raça que teóricos/as e movimentos sociais têm produzido, ao menos desde os anos 80, um pensamento heterogêneo. Encontramos em Angela Davis, um questionamento sobre como as relações raciais e de gênero sobrepesaram no movimento sufragista estadunidense, estabelecendo dificuldades para uma irmandade concreta entre mulheres brancas e negras. A própria compreensão do que era ser mulher foi filtrada pela raça, como nos indica o pertinente discurso de Sojourner Truth (1797-1883) Eu não sou uma mulher? (1851) que, não à toa, foi ignorado por boa parte da historiografia sobre o movimento feminista, construindo uma narrativa harmônica e hegemonicamente branca. Como aponta a teórica Clare Hemmings em seu artigo Contando estórias feministas (2009), precisamos superar análises que adotem visões lineares, atentando para as múltiplas ideias em debate quando se trata do pensamento feminista.

No Brasil, intelectuais como Heleieth Saffioti (1934-2010) em seu livro As mulheres e a sociedade de classes: mito e realidade (1969) e Lélia Gonzalez(1935-1994) no artigo Racismo e Sexismo na cultura brasileira (1984) já analisavam o caráter estrutural da raça e do sexo na sociedade brasileira, compreendidos como um duplo fenômeno com efeitos violentos, especialmente para as mulheres negras. Vistas em perspectiva relacional com as desigualdades de classe, as categorias analíticas de “raça” e “gênero” oferecem uma chave interpretativa para a compreensão das desigualdades sociais em perspectiva interseccional. A referida ferramenta analítica, identificada e acionada por importantes teóricas negras afro-norte-americanas como Patricia Hill-Collins e Kimberlé Crenshaw, tem em sua base interpretações de dados empíricos com rigor “científico” e objetividade acadêmica, a partir de referenciais conceituais extraídos da experiência histórica dos movimentos sociais. Nada aqui lembra uma “seita” religiosa heterodoxa ou irracional, nem um complô contra o conhecimento estabelecido, mas avanços concretos na busca da compreensão de processos complexos relativos a grupos majoritários porém vistos como “minorias” até muito pouco tempo atrás.

É um erro bastante recorrente examinar intelectuais vinculados às ditas “minorias” políticas perpetuando uma concepção que tende a homogeneizá-los. O mesmo ocorre ao olhar para os movimentos sociais e não compreender a polifonia que os constitui. É o que o autor faz, ao, por exemplo, utilizar a noção de “movimentos identitários” e reduzir diferentes horizontes e estratégias de luta a uma questão geracional. O papel da universidade não é o de autorizar ou vetar manifestações, movimentos e ideias, mas a de estudar e compreender suas lógicas, compartilhar conhecimentos, postura que exige diálogo e aproximação.

É chegado o momento de, para fazer avançar o que entendemos por “humanidade”, deixar de falar pelos outros e olhar criticamente para nós mesmos(as), pois um dos traços inerentes ao saber efetivamente científico é sua capacidade de crítica e autocrítica. É hora de estarmos dispostos a reavaliar os pilares sobre os quais assentamos as fundações do “templo de mármore” da ciência, retirar os seus adornos, transformando o templo em um espaço de debate e interlocução.


(*) Docentes do Departamento de História/UFRGS

bottom of page